Por Ana Clara Matta e Fernando De Lucca
A música, como forma de expressão do povo, é uma das mais fortes armas de qualquer revolução. Assim surgiu a música folk, assim surgiram os escritos de “This machine kills fascists” estampados no violão de Woody Guthrie, assim surgiram hinos oficiais e extra-oficiais de todo tipo de mobilização popular. De algumas revoluções nasceram mudanças permanentes, nasceu esperança. De todas as revoluções nasceram músicas.
Alguns puristas literários ainda se incomodam, consideram indigna a transformação das palavras de Victor Hugo em sua obra-prima Os Miseráveis (letras que já eram fortes sem o artifício da música) em uma produção musical da Broadway. Mas a verdade é que a música sempre esteve ali, encrustada na história de duas revoluções (a Revolução Francesa e a Rebelião de Junho, primeiros passos da Primavera dos Povos) e as vidas atravessadas por elas.
É basicamente impossível diminuir a força do conto de Jean Valjean, ou estragar as músicas imortais de Boublil, Schonberg e Kretzmer. Mas uma diferença narrativa enorme passa pela nova versão cinematográfica dessa história: aqui o vilão não é o Inspetor Javert. O vilão da mais francesa das histórias, ironicamente, é britânico e carrega um megafone. O vilão é Tom Hooper, que insere todos os seus maneirismos em um filme que é bem sucedido apesar de seus esforços para submergir a história em excessos, cacoetes visuais e problemas de ritmo.
Os Miseráveis é concedido a partir de momentos apoteóticos. Como todo musical clássico da Broadway, a história é construída em cima de cenas que culminam em grandiosidade, notas impecavelmente atingidas e cenários fantásticos que se movimentam na mesma agilidade dos atores e ritmo. Aqui, a escolha de cenografia e condução remete ao palco; os espaços são compactos, não importando suas dimensões, e os personagens inseridos ali se locomovem com a noção imaginativa de algo maior.
O clima do teatro é ainda mais trabalhado ao colocar os atores cantando no momento, sem o uso de gravação editada de estúdio. Cenas em um único plano, como o icônico número I Dreamed a Dream, não são enfeitadas ou elaboradas com grandes artifícios, transmitindo a sensação do “ao vivo” que basta no teatro musical; a atriz e sua voz. Mesmo que a direção em aspectos técnicos de Hooper não consiga exprimir grandes feitos, sua linguagem exalta o que o musical Os Miseráveis soube transmitir em sua forma original.
Duas interpretações se destacam durante a produção de Hooper, duas estrelas que brilham por pouco tempo, mas ofuscam todo o resto. Uma delas é Anne Hathaway. A outra é Samantha Barks, que com sua Eponine arranca lágrimas e arrepios inesperados. Fantine e Eponine possuem um significado demarcado no cenário da revolução e da sociedade da época, o simbolismo da oportunidade perdida e mais tarde massacrada pelas mãos de quem as retirou em primeiro lugar; Fantine representando algo maior, a mulher traída pelo povo, e Eponine algo mais singelo, um romance que nunca teve qualquer chance de florescer. A dor, no entanto, é a mesma.
Completando, Hugh Jackman, que já havia surpreendido a todos que o conheciam primeiramente pelo cinema com o musical da Broadway The Boy from Oz, onde canta e dança e ainda leva para casa um Tony, associa perfeitamente a teatralidade com a expressão comportada que o close do cinema exige, e nos entrega o que talvez seja a performance masculina mais poderosa já vista em um filme musical. E tanto Eddie Redmayne e Aaron Tveit, jovens atores já com grandes nomes no cenário do teatro, complementam o forte coro, com Amanda Seyfried contrabalanceando com uma coloratura surpreendente.
Em Os Miseráveis, nada é fácil. A história é sofrida, triste, emocionante em níveis fortes. Falta piedade ali. E acompanhar um filme inteiramente cantado não é algo que o público esteja acostumado a ver. Todas as camadas que a história original de Victor Hugo teve no decorrer dos anos, passando pelo palco, adaptações cinematográficas não-musicais e este último filme de Hooper, estabelecem um ícone em cima do título onde a popularidade já nos diz o quanto vamos sofrer. Mas passa. Assim como aprendemos a admirar Os Miseráveis como um símbolo, dentro da essência da história está a mensagem de que, no fim, os símbolos é que permanecem. As pessoas continuam vivas na memória do amor e da luta compartilhados. Basta ouvi-los cantar.
Os Miseráveis termina com um coro, e não um solo.
Nota, por Ana Clara Matta: 8
Nota, por Fernando de Lucca: 9