Corações de Ferro é, como parece, um filme sobre uma máquina. Essa máquina, porém, não é um tanque de guerra. Não é um tanque norte-americano, não é um tanque alemão. Não é sobre uma máquina de guerra dos anos 40 ou de hoje. Não é nenhum tipo de armamento (mas é, talvez, o produto mais letal da indústria bélica). A matéria-prima que é alimentada para essa máquina são seres humanos – e seu produto final são, também, seres humanos. Essa máquina consume energia? Curiosamente, essa máquina é a nossa única invenção completamente autônoma energeticamente. Em algum ponto antes mesmo da era clássica essa máquina foi iniciada, e funciona até hoje sem consumir energia de nenhuma natureza. Afinal, o seu produto final retorna à cadeia de produção como o combustível da máquina. Todo homem que passa por ela sai mudado, e retorna ao processo para mudar outros homens. A sua produtividade é impressionante. Essa máquina é a guerra em si, quebrando homens até que uma coisa seja criada em seu interior – o ódio, que será repassado para outros, e outros.
Corações de Ferro não é o primeiro filme a falar dessa máquina, não será o último, e com certeza não é o definitivo. O que o diferencia de obras-primas como Nascido para matar, Apocalypse Now, A Infância de Ivan, Vá e Veja ou Guerra ao Terror é o seu momento de corte – a decisão de interromper a trajetória de um dos produtos dessa máquina, o antes inocente e bondoso Norman (interpretado de maneira bonita por Logan Lerman) antes que ele saia do campo de batalha, instantes depois de seu feito heroico filmado por David Ayer como uma cena catártica de videogame. Vemos o campo de batalha endurecer Norman, mas nunca quebrar. E dessa maneira, um filme cujo discurso parece apontar para os horrores das guerras, não poupando nunca o espectador de cenas de violência extrema, termina em uma nota de exaltação da guerra.
Uma comparação útil a ser feita é a que envolve Corações de Ferro e outro filme lançado neste mesmo ano, o indicado ao Oscar Whiplash, de Damien Chazelle. Ambos retratam jovens que passam por abusos físicos e morais de seus superiores, e terminam com a transformação desse jovem em uma espécie de herói que triunfou no sofrimento. Mas se o filme de Chazelle mostra o jovem se transformando em um artista ousado, corajoso e inventivo, o filme de Ayer mostra a transformação de Norman em um guerreiro mecânico, agressivo e com uma tonelada de ódio em suas atitudes e discurso.
O filme de Ayer está ciente do arco de seu protagonista, mas o que parece escapar em sua ideologia é que o filme em si se transformou em uma máquina em miniatura. O roteiro humaniza os colegas de pelotão abusivos de Norman e nunca humaniza os alemães, termina antes de revelar as consequências sofridas por Norman em sua psique frágil e dessa maneira coloca o espectador, bombardeado com violência filmada de maneira ora brutal ora belamente fotografada, com luzes, silhuetas e fumaça, no mesmo arco produtor de ódio cego e brutalizante. A fotografia extremamente impressionante esbarra no conceito de abjeção e nos limites da estetização da violência.
O elenco de Corações de Ferro tem seu elo mais fraco em Brad Pitt, que entrega aqui um amálgama de outras interpretações que já realizou em filmes superiores. Mas mesmo o elo mais fraco do elenco é forte para os padrões – e alguns coadjuvantes, como Shia LaBoeuf e Michael Peña, estão impressionantes, dominando a tela. A trilha sonora acompanha a edição ágil e gera o ritmo de ação/aventura que captura o espectador e não solta até a sequência (incrível) de créditos finais.
Não é difícil se deixar levar pelo impacto visual, pelo ritmo e pelas emoções de Corações de Ferro, mas o efeito final é tóxico e revoltante. Parem as máquinas.
Nota: 5,5