“Quando a lenda se torna fato, imprime-se a lenda.”
A frase do clássico O Homem que Matou o Facínora já está gasta nas beiradas mas está longe de perder a tinta. O rock, um gênero musical que revela uma aproximação com gêneros fílmicos que se alimentam de lendas, gêneros codificados como o western, o noir e o horror, um gênero musical que depende historicamente de personagens delineáveis com um mínimo esforço da memória. As silhuetas de Ziggy Stardust e Nosferatu são igualmente reconhecíveis.
É exatamente a sua insistência em imprimir a lenda que diferencia 20.000 dias na Terra de outros documentários biográficos de teor musical, especialmente de seu contraponto contemporâneo, o retrato de James Murphy e seu LCD Soundsystem em Shut up and play the hits.
Dois rockstars se levantam da cama, afastando os lençóis brancos e olhando para a mesa de cabeceira. Dois filmes começam com uma tomada semelhante da vida doméstica de um ícone do rock, e culminam em shows apoteóticos. Mas Nick Cave e James Murphy são rockstars diferentes, e seguindo seus passos, os diretores que se aproximam desses personagens no momento decisivo do fazer fílmico, tomam decisões diferentes diante da pergunta “o que imprimir no filme, a lenda ou o fato?”. James Murphy abandonou sua banda a partir de uma relutância em deixar de ser um cara comum e se transformar em uma lenda. Nick Cave, o personagem, canibalizou Nick Cave, o homem. A lenda é o que permaneceu. E é a lenda que é filmada por Iain Forsyth e Jane Pollard.
O ápice da lenda em 20.000 dias na Terra está nos momentos em que Cave passeia por Brighton de carro, e recebe visitas de fantasmas do passado, como Kylie Minogue, que dividiu com o músico um single de sucesso nos anos 90. A única pessoa concreta, afastada do clima etéreo das outras participações, é Warren Ellis, o parceiro de longa data de Cave, uma âncora familiar e pacífica na tempestade orquestrada do filme.
Privar o espectador leigo de traduções nas letras cantadas por Nick Cave causa uma grande perda na mitologia do compositor. Cave é um trovador de “murder ballads”, distorce personalidades e fatos até o ponto de quebra, criando narrativas assustadoras e magnéticas sobre assassinato, obsessão, depravação, angústia. Os diretores britânicos responsáveis pelo documentário o filmam como um noir desvelado cena a cena, com panorâmicas e tracking shots lentas, viagens de carro e cenas noturnas centralizadas no anti-herói solitário de Cave. Na montagem final, Iain. Jane e o montador Jonathan Amos brilham, fundindo passado e presente usando como raccords os movimentos de Cave no palco.
“Eu consigo controlar o tempo com meu temperamento, só não consigo controlar meu temperamento.” Em apenas uma frase, Nick Cave descreve a essência do seu trabalho – a capacidade de conjurar tempestades e distorcer a atmosfera de qualquer pequeno evento prosaico, transformando homens em monstros e monstros em lendas. A única coisa que Cave não consegue transformar é a si mesmo, sua própria lenda, cristalizada e atemporal.
Nota: 8,5
Marcado: 20000 days on earth, INDIE Festival 2014, Nick Cave
Adorei o lance dos fantasmas visitantes. A resenha, como sempre, é ótima.